Quantcast
Channel: Lar Montessori » Imaginação
Viewing all articles
Browse latest Browse all 4

Natal sem Noel: Uma perspectiva a favor da imaginação

0
0

O maior astro da minha infância foi Carl Sagan, um astrônomo famoso, que protagonizou a série “Cosmos” e escreveu um livro lindo e grande de mesmo nome. Bem antes de minha adolescência, encontrei este livro na casa de meus avós e o peguei para mim, para alimentar minha imaginação com as belíssimas imagens dos planetas do Sistema Solar e com as ilustrações do Big Bang e das nebulosas, além de fotografias em branco e preto de galáxias próximas e distantes e de uma mensagem criptografada enviada por ondas de rádio para o espaço. Passei anos tentando compreender essa mensagem, e não consegui. Mas eu aprendi o que são ondas de rádio.

Carl Sagan, quando perguntado se acreditava em algo, respondeu: “Não quero acreditar, eu quero conhecer”. Carl Sagan, um cientista, racional e poético ao mesmo tempo, foi o homem que mais estimulou minha imaginação. Eu passei horas aprendendo todas as histórias de constelações, as investigações de Von Daniken, sobre os extraterrestres, e depois as teorias conspiratórias sobre a ida do homem à Lua. Tudo isso fez parte de minha infância e de minha adolescência, graças a Carl Sagan.

Para Montessori, a imaginação da criança deve desenvolver-se tendo como base a realidade. Ela explica que todos os grandes artistas eram, antes de tudo, excelentes observadores do mundo real. Sua imaginação e sua criatividade não partiam das histórias de fantasia que, sem dúvidas, conheciam, mas da extensão de seu raciocínio e de sua capacidade de observação.

Um segundo ponto bastante relevante na obra de Montessori é a ideia de que a educação deve ser, antes de tudo, “uma ajuda à vida”. Para ela, era mais importante ajudar a criança a se desenvolver plenamente do que seguir um currículo previamente estabelecido e, entre outras coisas, é isso que faz de Montessori um método com aplicação tão extensa em casa.

Partindo deste pressuposto, devemos nos lembrar sempre de que um dos desafios enfrentados pela criança é a compreensão da realidade – a organização do mundo em categorias mentais. Assim, tudo o que a ajudar com isso é uma ajuda à vida, e tudo o que a atrapalhar nisso é um empecilho à vida. Colocado desta forma pode parecer um pouco extremo, mas em última análise é verdade.

Em artigos anteriores nós trabalhamos, por exemplo, a importância da ordem no ambiente, que ajuda a criança a reconhecê-lo e se comportar nele de formas que nós não acreditávamos que fosse possível. Também conversamos sobre a importância de se falar claramente com a criança, tanto para o desenvolvimento da linguagem quanto para a compreensão de pedidos e ordens. A nomeação de objetos foi tratada também, e o objetivo é o mesmo, compreender o mundo por meio de categorias mentais. Nós, adultos, fazemos isso o tempo todo, mas já temos muitas categorias, então é fácil. A criança não tem nenhuma, então além de categorizar as coisas, ela precisa desenvolver a noção extremamente abstrata de categorias, o que é dificílimo. Se pudermos ajudar nisso, tudo melhora.

Para Montessori, existe uma diferença fundamental entre imaginação e fantasia. Imaginação é aquilo que surge da inteligência e que ultrapassa os limites da realidade conhecida. Fantasia, por outro lado, é a imposição de uma falsidade no plano da realidade, de forma a fazer a criança acreditar que a realidade é diferente do que é.

Os seres do mundo da fantasia são lindos e poéticos para nós, adultos, que sabemos serem fantásticos e nos encantamos com a imaginação de quem os criou. No entanto, nos comportamos de formas dúbias com a criança: se suas fantasias são do lobo mau, o homem do saco ou o bicho-papão, dizemos, para tranquilizá-la, que estes seres não existem, e que ela não deve ter medo do que não existe. No entanto, para que se encante com o mundo, nos permitimos contar a ela histórias que sabemos serem irreais. O medo do que não existe não é tido como certo, mas o encantamento pelo inexistente sim. Montessori defende que o encantamento deve ser por aquilo que existe, exatamente como Carl Sagan, que me encantou com todas as estrelas do céu.

O Papai Noel não existe. E se compreendemos que a imaginação parte da observação da realidade e que o maior auxílio à vida da criança é a ajuda na compreensão da realidade, não existe uma justificativa para dizer o contrário à criança.

O Papai Noel personifica, na melhor das hipóteses, algumas ideias belíssimas: as de generosidade, bondade, disposição, merecimento e gratidão. Estes sentimentos são extremamente reais, e é de absoluta importância que a criança consiga senti-los em relação a seres reais, ao mundo real, a pessoas reais. E é esta ideia que defendemos aqui.

Em lugar de dizer que Papai Noel trouxe os presentes de Natal, sugerimos que os presentes sejam dados pelos pais, pelos tios, pelos irmãos, avós, amigos, pela escola, igreja, grupo escoteiro ou quem quer que seja. Defendemos que pessoas reais tomem para si a capacidade de se mostrarem abertamente generosas. A possibilidade de realmente dar algo à criança é belíssima, poética em si mesma. É isso o que amamos no Papai Noel, ele faz as crianças felizes. Nós podemos fazer exatamente o mesmo, nós, adultos, auxiliadores da vida, os protetores da infância. Nós podemos fazer as crianças felizes e podemos aceitar esta imensa responsabilidade.

O Papai Noel é generoso, ele dá brinquedos a todos, “Seja rico ou seja pobre, o velhinho sempre vem”. Nós sabemos que não é sempre que ele vem, que muitas famílias não têm uma visita do Papai Noel. Que tal nós irmos lá, como seres humanos reais, e termos a generosidade do Papai Noel, junto com as crianças, e darmos brinquedos belos, bons, para crianças pobres, que estavam esperando um presente e que vão recebê-lo, de surpresa, de um estranho – mas de um estranho que existe, que está no mundo – um estranho que é uma esperança real de renovação para a humanidade. Este estranho pode ser você, ou pode ser seu filho, um pequeno estranho que presenteie outro.

O Papai Noel é bondoso, ele nunca briga, ele sempre deixa que lhe puxem a barba, que lhe explorem as roupas, que lhe sentem ao colo. O Papai Noel tem tempo para todas as crianças do mundo em uma só noite. Nós podemos ser o Papai Noel todos os dias tendo todo o tempo do mundo para algumas poucas crianças – aquelas que moram conosco. Esta materialização da bondade é muito mais forte e perene do que aquela que acontece somente uma vez ao ano, ou algumas, nos shoppings, durante o mês de dezembro. Novamente, você pode ser também este aspecto do Papai Noel.

O Bom Velhinho fala sobre merecimento. A criança que se comporta bem é aquela que recebe os bons presentes. Mas nós sabemos que, em condições ideais de ambiente e preparo do adulto, todas as crianças se comportam bem. Quando não, é menos porque não querem e mais porque não conseguem. A ideia de merecimento do Papai Noel vem atrelada à noção de prêmio e punição, que embora ainda persista na educação, tem vários pontos polêmicos a considerar e se demonstra cada vez mais sem validade científica. Montessori, por sua vez, reprovava a ideia de que o prêmio estimula um comportamento e a punição o reprime – para ela, o caminho para o bom comportamento era a liberdade em um ambiente preparado, pois assim a alegria interna da realização da criança seria suficiente para que ela se mantivesse um bom caminho.

Por fim, a gratidão que nasce da criança em relação ao Papai Noel, e que a faz ser extremamente apegada a esta imagem como a uma esperança de alegria, pode nascer em relação ao mundo, às pessoas que a presenteiam, ou mesmo àquelas que só vivem com ela ou lhe ajudam de alguma forma. A criança pequena pode ser grata aos que lhe são próximos, enquanto que para a criança mais velha algo muito mais amplo e belo é possível: podemos lhe contar sobre todas as pessoas envolvidas na construção dos produtos que ela consome, sobre quem criou e fabricou os presentes que ela ganha. Assim, a gratidão da criança se estende ao mundo todo e fica simples compreender a interdependência entre todos e tudo o que há no mundo. Afinal, é por meio do trabalho de pessoas do mundo todo que o Papai Noel consegue estar em todos os lugares em uma só noite.

Falta-nos, por vezes, um maravilhamento diante do mundo. Para mim, a frase mais bela de toda a obra de Montessori é: “Não basta que o professor ame a criança. É, antes, necessário que ele ame e conheça o universo”. Quem conhece, ou quem caminha para conhecer, o universo, sempre o ama, e sempre se maravilha, se encanta diante das infinitas possibilidades, belezas e fenômenos que, sendo reais, parecem contos de fantasia.

Nós podemos ajudar a criança a amar e conhecer o universo, e ela crescerá apaixonada pela natureza, feliz pelas infinitas possibilidades da vida, grata pela imensa força da humanidade e encantada por aquilo que é fantástico, não porque não existe, mas justamente porque existe, justamente porque pode ser visto, tocado, experimentado, sentido. Perceberá que o mundo, exatamente como é, guarda tudo o que há de incrível, e tudo o que é necessário para que nos inspiremos a nos tornar seres humanos melhores.

O Papai Noel não é necessário. Ele não precisa estar na sua casa. Estando, ele pode ser mais um enfeite de Natal, e não precisa se tornar o protagonista da comemoração. Ele pode ser um coadjuvante querido se sua verdadeira história – que é tão linda – for contada à criança. Caso seu filho pergunte se Papai Noel existe, seja sincero, diga a verdade, e em seguida peça: “Mas posso lhe contar algo mais incrível que a história do Papai Noel?”, e lhe fale de todas as pessoas que se esforçam todos os dias para que ele ganhe belos presentes, e de como é incrível viver em um mundo em que tantos agem para que todos vivam cada vez melhor.

Por fim, se o seu filho já acredita em Papai Noel, fique tranquilo, você não vai ser o responsável por destruir a fantasia. Simplesmente não a alimente mais, aos poucos permita que a realidade surja e que ele se acostume com ela. Um dia, ele vai perguntar, e neste dia você vai responder, e vocês dois vão perceber que há verdades melhores do que nossos melhores sonhos.

“Em algum lugar, alguma coisa incrível está esperando ser descoberta” – Carl Sagan



Viewing all articles
Browse latest Browse all 4

Latest Images





Latest Images